Trechos do artigo de GANDRA, Y. R. – Rev. Saúde Pública, S. Paulo, 15(suppl.):3-8, 1981.
A faixa etária até os seis anos necessita de apoio especial, quer devido ao processo de maturação biológica, durante a qual a alimentação desempenha papel decisivo, quer pelo desenvolvimento sócio-psicomotor, para o qual contribuem fundamentalmente a família, a comunidade e, complementarmente, as instituições que os assistem.
MATURAÇÃO BIOLÓGICA – No processo de formação da criança, os tecidos se organizam e as funções celulares e tissulares se definem. Para isso, deve existir um sistema regular de abastecimento de nutrientes capaz de propiciar seu pleno desenvolvimento.
Aos 2 anos de idade o peso da criança já é o quádruplo daquele do nascimento, aumentando, em continuação, cerca de dois quilos por ano de idade. Aos 6 anos já pesa cerca de seis vezes mais e o seu perímetro craniano atinge a nove décimos de seu valor adulto.
Quando a criança chega aos 4 anos, já possui cerca de 90% da massa cerebral do adulto. Esta é, portanto, uma fase de rápido desenvolvimento anátomo-fisiológico para a qual a nutrição tem importância fundamental.
DESENVOLVIMENTO COGNITIVO – Paralelamente ao desenvolvimento anátomo-fisiológico, a criança necessita receber do meio ambiente estímulos e solicitações adequados para que desenvolva suas estruturas cognitivas por meio de processo espontâneo e de interação com o meio em que vive. Este desenvolvimento cognitivo da infância desempenha importante papel no futuro comportamental do indivíduo na comunidade biótica em que vai viver. O acervo de conhecimentos adquiridos é progressivo, cumulativo e sua aquisição obedece à norma seqüencial e a um ritmo que é determinado pela densidade e qualidade dos estímulos recebidos.
Toda criança possui uma base informacional que a torna apta a receber as informações biológicas: genéticas ou neuronais. As primeiras constituem “o plano básico de construção do indivíduo” e que, de certo modo, predispõem ou pré-determinam o seu comportamento frente aos estímulos que receberá. A par das informações genéticas, o indivíduo também traz ou recebe informações ao nível neuronal (informações neuronais programadas e programáveis).
O ser humano tem uma alta habilidade em armazenar informações em nível neuronal, uma vez que dispõe de maior número de neurônios programáveis que os demais animais.
As “informações neuronais programadas” já são parte do indivíduo por ocasião do seu nascimento. É o que explica, por exemplo, o instinto e os reflexos neuro-musculares e respiratórios, do ato de mamar e tantos outros. Estas informações neuronais, já programadas, possibilitam, na realidade, a fase inicial de acomodação do ser vivo na sua interface com o meio ambiente.
Os neurônios possuem também capacidade aberta para incorporarem novas informações recebidas após o nascimento (informações neuronais programáveis). Esta incorporação irá depender do grau de interação do indivíduo com o meio em que vive. Há, na realidade, um número muito grande de neurônios livres aptos a gravarem informações não-genéticas e estocá-las em sua organização estrutural.
A massa de informações neuronais programáveis, embora tenha sua base na herança biológica, vai depender, fortemente, dos estímulos que a criança recebe do meio em que vive.
Além dessas informações adquiridas pelos neurônios, ainda existem outras extra-somáticas que se processam através de símbolos criados pelo próprio homem que, desta forma, poderá guardar informações fora dos próprios neurônios. As informações extra-somáticas aumentam significantemente a capacidade informacional do homem.
O relacionamento com o meio propicia um acúmulo concatenado de conhecimentos e habilidades novos, adquiridos através da linguagem, da atividade motora, do inter-relacionamento social e da aprendizagem.
O processo do conhecimento é, na realidade, o resultado do relacionamento do sujeito com o evento ou o objeto que o meio se lhe apresenta, resultando daí a aquisição de uma representação intelectual daquele evento ou objeto, que em seguida passa a pertencer ao seu acervo próprio.
As sucessivas interações que ocorrem somam-se umas às outras para constituirem o ”processo cognitivo”. A “aquisição” desses conhecimentos é conseguida através do que se chama de processo de adaptação, o resultado do equilíbrio harmônico da criança com o meio em que vive. A adaptação é conseguida através da “assimilação” e da “acomodação”. A primeira se processa quando o organismo modifica o objeto ou o fato externo para melhor incorporá-lo às suas estruturas cognitivas em formação, e a segunda, quando o próprio organismo se modifica no sentido de acomodar-se à nova situação. Esses processos vão constituir a base do desenvolvimento da criança sem contudo atritarem as estruturas pré-formadas. Quanto maior o contingente assimilado e acomodado maior será a capacidade de assimilação e de acomodação a novos contingentes.
As operações cognitivas dão os alicerces para o raciocínio da criança e, como diz Piaget, nada mais são que “uma reconstrução endógena de dados exógenos fornecidos pela experiência”. O processo de aprendizagem posterior utiliza o sistema de estruturas pré-formadas com o desenvolvimento; de onde se conclui que ele depende deste mesmo desenvolvimento.
A aprendizagem por si mesma não dá origem a novas estruturas embora possa modificá-las em sua interação. A inteligência, que também pressupõe uma estrutura preestabelecida, não dispensa um processo de troca com o meio. Este a exercita e potencializa progressivamente através de novas experiências da criança com o mundo externo em que vive. É a capacidade de se equacionar, frente a novas experiências, os conhecimentos incorporados em experiências anteriores. O desenvolvimento da criança nesse aspecto foi profundamente estudado por Piaget e suas lições clássicas permanecem até hoje como diretrizes que têm servido de base às pesquisas posteriores nesta área.
Sabe-se que o desenvolvimento da criança se processa por etapas cuja instalação obedece a certa ordem seqüencial idêntica para todos os indivíduos. Esta seqüência tem caráter somatório.
Por outro lado, existe um ritmo nesta ordenação, ritmo este variável de acordo com a densidade de estimulações que o ambiente oferece. Quanto mais freqüentes, quanto mais adequadas forem estas estimulações, mais acelerado será o ritmo do desenvolvimento. Crianças que cresceram em ambientes carentes de estímulos não apresentam facilidade para a aprendizagem uma vez que não possuem estruturas operacionais aptas a equacionarem novos eventos e seqüências.
Daí se compreender a importância do atendimento ao pré-escolar nessa fase de desenvolvimento, no sentido de complementar os estímulos que a criança recebe do meio familiar e comunitário em que vive.
As crianças que advêm de meios menos favorecidos apresentam, por exemplo, um vocabulário pobre, além de não possuírem agilidade lingüística suficiente para manifestarem seu pensamento ou sua vontade. Os vocábulos simples são complementados por gestos na ausência de maior facilidade lingüística. Essas crianças apresentam um código de linguagem bastante diferente das de classe média ou alta; os próprios vocábulos muitas vezes têm significados diferentes e muitos deles são inteiramente desconhecidos, pois não estão presentes nos diálogos que ocorrem em seus próprios lares. Quanto mais estimulante for o ambiente, mais rapidamente se desenvolve a capacidade intelectual da criança.
DESENVOLVIMENTO PSICOSOCIAL – ao lado do processo de desenvolvimento cognitivo é fundamental apoiar a criança no desenvolvimento de processos não-cognitivos, ou psico-socio-emocionais. Tenacidade, auto-confiança, auto-estima, desembaraço, motivação, perseverança, são características que podem ser adquiridas em maior ou menor grau dependendo do apoio que a criança receber da família, da comunidade e da instituição que a acolher.
O educador, o orientador, portanto, têm que providenciar aos pré-escolares, mais que o ensino, os procedimentos adequados que garantam o desenvolvimento integral da criança. Esses procedimentos devem ativar as estruturas pré-operacionais a fim de que o exercício permanente da razão permita tornar suas estruturas verdadeiramente operacionais.
Neste processo, em que as experiências se somam, fácil é pois reconhecer a importância da fase pré-escolar no processo evolutivo da criança. Aquelas que coabitam lares pobres, plenos de privações, carentes de estímulos, de diálogos, não têm as mesmas chances para se desenvolverem que aquelas das classes mais privilegiadas; sua cognição é modesta, seu vocabulário é limitado, sua sociabilidade incipiente e sua atividade não encontra eco. É a privação cultural.
Essas crianças, ao atingirem a idade escolar, entram nessa estrutura de ensino sem as condições mínimas para acompanharem o currículo escolar do 1° grau, currículo este organizado para as classes média e alta do país.
Considerando que das crianças matriculadas na primeira série do 1.° grau, mais de 60% provém de famílias de baixo nível sócio-econômico, e que essas crianças são portadoras de carências alimentares, emocionais e culturais que condicionam atraso no seu desenvolvimento físico, social e mental de, em média, dois anos, impõe-se a busca de soluções formais, institucionalizadas, e também não formais, conjunturais, para se ampliar o atendimento ao pré-escolar como meio, inclusive, de aumentar a rentabilidade do ensino do 1.° grau.
De acordo com as estimativas do Ministério de Educação e Cultura (MEC), o Brasil contava em 1978 com 21.000.000 crianças pré-escolares. E destas, cerca de 17.000.000 na faixa etária de 2 a 7 anos de idade. Deste contigente, apenas 600.000 pré-escolares eram atendidos por instituições especializadas. Em que pese a imprecisão das estatísticas oferecidas pelos órgãos oficiais, pode-se estimar que não mais do que 5% dos pré-escolares de 2 a 6 anos de idade são atendidos por instituições oficiais ou particulares do Brasil.
Vários serviços, tais como creches, parques infantis, escola de educação pré-escolar e outras, atendem no país ao pré-escolar. Entretanto, o que se pode concluir é que as instituições, embora persigam os seus objetivos iniciais, não conseguem atender a fração significativa da população pré-escolar, pois que 95% dos pré-escolares nessa faixa etária não recebem nenhum atendimento complementar que assista ao seu desenvolvimento. Deve-se notar ainda que a maioria (51%) das classes pré-escolares no Brasil, é de iniciativa particular e, portanto, não se destinam ao atendimento das classes de nível sócio-econômico mais baixo, isto é, as que mais necessitam de assistência.
De alguns anos para cá as autoridades nacionais relacionadas com a educação vêm desenvolvendo esforço no sentido de aumentar a oportunidade do pré-escolar se engajar no sistema de atendimento. O número de matrículas de pré-escolar vem aumentando gradativamente. O ritmo anual de aumento de matrículas em relação a população pré-escolar está em torno de 0,25% e, nestas condições, para que se atinja, por exemplo, 70% dos pré-escolares existentes no Brasil, levar-se-ia cerca de 260 anos.
O atendimento global e precoce ao pré-escolar repercute, favoravelmente, sobre o rendimento pedagógico e sobre os custos do sistema educacional, minimizando a elevada taxa de repetência nas primeiras séries do 1.° grau e a acentuada evasão e o absenteísmo escolar — considerando os recursos disponíveis para a ampliação deste atendimento — impunha-se desde logo a busca de soluções complementares compatíveis com a realidade nacional e que, embora não satisfazendo todas as exigências pedagógicas instituídas no país, propiciariam maior cobertura oferecendo à criança, na época certa, a oportunidade de acelerar o seu desenvolvimento integral.